Adoro futebol, desde criança. Minha condição de banguense permite a convicta afirmação de que adoro o futebol pelo futebol mesmo, e não porque fanaticamente tenha elegido um clube vencedor como uma religião, ou porque me queira sentir vitorioso ao fim de cada semana, transferindo para mim as vitórias do meu time. Gosto do futebol pela plástica desse esporte, pelo que há de coletivo nas evoluções de uma equipe bem estruturada, pela confraria colorida e alegre que ele propicia ao redor do campo. São muitas as razões para que eu goste do “velho esporte bretão”, que alguns chamavam de violento, certamente porque não conheciam o MMA... Uma dessas razões, porém, seguramente, não é a identificação de uma seleção brasileira com a nação, pois não participo da opinião de quem acha que, em épocas de Copa, aqui nos transformamos em uma “pátria de chuteiras”...
As discussões que estão ocorrendo em torno da formulação de uma Lei Geral da Copa colocam em destaque, necessariamente, a força descomunal que se pretende tenha o futebol, em detrimento de muitos valores que deveriam constituir “claúsula pétrea” em nossa sociedade. Afinal, o Brasil vem se firmando no cenário mundial nos últimos anos e, seguramente, isso não tem nada a ver com vitórias no campo futebolístico, que aliás andam escassas entre nós, mas sim com conquistas comunitárias que as políticas sociais do governo vêm implementando.
Muitas vezes já me referi aqui ao descalabro que é esse açodamento pela construção de estádios em certas cidades que, após a Copa, não vão utilizá-los de modo a obter benefícios que justifiquem os altos custos dos empreendimentos, muitos deles feitos exclusivamente com dinheiro do povo. Nesses casos, o tão propalado “legado” a ser deixado será um elefante branco, um verdadeiro escárnio às efetivas necessidades populares.
Mas isso já é irreversível e só resta acompanhar o desenvolvimento da coisa. Há muitos outros valores em jogo, além dos financeiros. Recentemente, tivemos entre nós, uma vez mais, o secretário-geral da FIFA, Sr. Jérôme Valcke, na condição de avaliador da nossa competência e quase se atribuindo a última palavra em assuntos que têm a ver com as políticas internas do país e, se pensarmos bem, com a própria soberania nacional. Ao afirmar, por exemplo, que está na hora de encerrarmos a discussão sobre a Lei da Copa e aprová-la (só faltou dizer; ”aprová-la do jeito que queremos”), o Sr. Jérôme extrapola suas funções. Uma frase sua: "Só porque vocês ganharam cinco Copas do Mundo, vocês acham que podem pedir, pedir e pedir". Pior é que conta com o apoio interno de muitos brasileiros que, por razões e interesses os mais variados, fazem coro às suas “recomendações”.
A mídia comprometida com os aspectos econômicos do evento, tão “zelosa” em muitas outras situações, faz um coro não muito discreto às críticas quanto aos nossos atrasos em cumprimento de prazos. Compondo o cenário, o ex-jogador Ronaldo Nazário, membro do Comitê Organizador local, tenta substituir, com o carisma que possuiu quando “fenômeno” futebolístico, a discutibilíssima credibilidade dos titulares do esporte brasileiro, entre eles o Sr. Ricardo Teixeira.
Há muitos assuntos pendentes e que a tal Lei da Copa terá que regular. Um deles: a venda de bebidas alcoólicas nos estádios em que os jogos se realizarem, contrariando legislação interna do país que proíbe tal prática. Em entrevista que deu, o secretário da FIFA, em um primor de sofisma, disse que não queria falar de venda de bebidas alcoólicas, mas de venda de cerveja...
Outro assunto é a colocação de ingressos mais baratos para estudantes e idosos, prática institucionalizada no país, sendo que o Governo quer acrescentar como beneficiários os indígenas e os detentores do Bolsa Família. Há quem considere demagógico o acréscimo governamental, mas a verdade é que a proposta, entre outros méritos, pode ter o de deflagrar, pelo exemplo, outras medidas da espécie que atinjam esses segmentos, depois que a Copa acabar. Esse seria um legado, talvez. De qualquer forma, o caso dos estudantes e idosos é diferente, pois se trata de manter o que já existe, sem retrocessos.
A verdade é que, por mais que gostemos de futebol, não dá para permitir, por isso, arranhões na soberania brasileira. E se a Copa é um negócio onde todos querem lucrar, o mínimo que esperamos é que esse lucro não se faça às custas de prejuízos à cidadania.
Rodolpho Motta Lima - Advogado formado pela UFRJ-RJ e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
Fonte:Jornal Agora 29/01/2011