Um dos mais completos estudos brasileiros sobre embriaguez no trânsito calculou o dano anual com as mortes associadas ao álcool nas vias da Região MetropolitanaQual o custo imposto a um pai de família obrigado a sepultar um filho de 20 e poucos anos vitimado pela mistura assassina de álcool e volante? Como medir o prejuízo causado a uma viúva diante do marido sem vida, abraçado pelos metais de um automóvel? Como dimensioná-los?
São perdas imensuráveis. Mas nem tudo é incalculável nesta carnificina diária. Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chegou a uma soma tão surpreendente como assustadora. A partir de uma estimativa feita com 155 mortos de Porto Alegre e Região Metropolitana, comprovadamente embriagados e que chegaram ao Departamento Médico Legal em 2007, chegou-se a uma despesa de R$ 45 milhões por ano, ou R$ 291 mil por pessoa. Este cálculo corresponde ao prejuízo com os chamados, pelo estudo, custos indiretos – o valor que o morto deixa de gerar para a sociedade em salários e consumo.
A Lei Seca, implantada em 2008, é uma das legislações mais restritivas em vigor no mundo. Só que não funciona – pelo menos não como deveria. Porto Alegre, por exemplo, registrou aumento de mortes no trânsito (veja na página 5).
Diretor do Centro de Pesquisa de Álcool e Drogas do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Flavio Pechansky costuma fazer uma pergunta no início de seus palestras:
– Quem já passou pelo bafômetro?
Ninguém se pronuncia. Para o psiquiatra, a Lei Seca ainda engatinha.
– Para que uma lei com estas características “pegue”, toda uma cultura relacionada às questões regulatórias, trânsito, álcool, impunidade e cumprimento das leis precisa ser modificada. Como nosso país vive um regime de impunidade, a lei pode até ser perfeita no papel, mas não será executada de uma hora para outra sem mudanças culturais – analisa Pechansky, que defende punições swift and certain (certeiras e rápidas).
300 mil vítimas em uma década
Dizer que o morticínio no trânsito no Brasil equivale a uma guerra não é apenas força de expressão. Basta cotejar números. Em uma década, tombaram nas rodovias, ruas e avenidas pelo menos 300 mil pessoas, mais que os soldados americanos vitimados na II Guerra Mundial (291 mil).
Um dos autores do estudo, Sabino Porto Junior, professor da Faculdade de Economia da UFRGS, sustenta:
– Se você pune as pessoas, você reduz acidentes de trânsito. Mas não é isso que acontece. Como resultado, temos uma perda de renda, uma perda produtiva. Toda sociedade perde.
As palavras de Porto são ratificadas pelas pesquisas contidas na publicação Uso de Bebidas Alcoólicas e Outras Drogas nas Rodovias Brasileiras e Outros Estudos – um amplo compêndio de investigações, que teve o psiquiatra Pechansky entre os organizadores.
Para o responsável pelo Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, José Roberto Goldim, o próprio nome conspira contra a medida:
– Não deveria se chamar Lei Seca porque não existe proibição ao consumo de álcool. As pessoas podem beber. Só não podem beber e dirigir.
Doutor em Medicina pela UFRGS, Goldim alerta para um detalhe que poucos levam em consideração sobre a possibilidade de conduzir veículos.
– Dirigir não é um direito. É uma concessão do Estado, que dá a permissão para a pessoa dirigir – afirma
Professora afiliada da Universidade Federal de São Paulo, Ilana Pinsky crê que a sociedade ainda escolhe as leis que devem ser cumpridas – e, até agora, decidiu desrespeitar a Lei Seca.
– Não caiu totalmente a ficha de que dirigir alcoolizado causa um prejuízo para todos. Em alguns países, as pessoas compreendem que os benefícios serão para todos – diz Ilana.
carlos.etchichury@zerohora.com.br
CARLOS ETCHICHURY
Fonte: Jornal ZERO HORA 22/08/2010
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