quarta-feira, 22 de abril de 2015

QUILOMBOLAS: UMA HISTÓRIA DE RESGATE

Município tem primeira área de remanescentes de escravos reconhecida na localidade de Potreiro


























Recentemente, a Vila do Sabugueiro, na localidade de Potreiro, em General Câmara, foi reconhecida como região de descendentes de africanos escravizados, ou seja, região quilombola. Um dos objetivos desse reconhecimento é o resgate da memória dos descendentes de escravos. O trabalho, capitaneado pela líder comunitária e agricultora Solange Rosa e pelo vereador camarense Norberto Azambuja, contou com o apoio da médica Rosangela Dornelles e do deputado federal Fernando Marroni.
A entrevista sobre a Vila do Sabugueiro aconteceu na casa da líder comunitária Solange, de 39 anos, e, além dela, estavam presentes João de Souza, 80 anos, e Celi da Rosa, 59 anos, ambos remanescentes de escravos. O vereador Noberto Azambuja e a médica Rosangela Dornelles também acompanharam a conversa. Solange é a mais falante entre todos, e enumera as conquistas e batalhas que o grupo busca com esse reconhecimento.
- A gente espera que, com esse reconhecimento, as coisas melhorem - justifica.
Todos os quilombolas moram próximos, em casas simples, e a maioria vive da agricultura, com a plantação de pequenas lavouras de subsistência. A esperança do grupo é a aquisição de implementos que possibilitem o fortalecimento da cadeia produtiva e a venda da produção agrícola.
- Queremos montar uma cooperativa aqui. Já conseguimos um Posto de Saúde (que deverá ser inaugurado em breve na localidade), mas a gente precisa de muito mais. Educação e atividades para nossas crianças e desenvolvimento da nossa região - afirma Solange.
João, que desde pequeno trabalhou na lavoura, “sempre na terra dos outros”, como gosta de salientar, é um homem brincalhão, mesmo com todas as intempéries da vida. Há cerca de 60 anos, ele passou a viver em um canto de uma propriedade, com a promessa de aquele espaço ser seu. Após a morte do dono, os herdeiros venderam as terras, e o novo proprietário tentou expulsar João de sua casa. O idoso contou com o apoio de advogados para conseguir provar que aquele pequeno lote de terra era seu.
- Agora aquilo é meu, tenho escritura e tudo - garante.
Avesso às letras, mas rico na oralidade, João vê no pedaço de papel com símbolos e carimbos a segurança para que nunca mais o ameacem de tirá-lo do seu canto.
O aposentado queixa-se da falta de médico, a esperança é a abertura do Posto de Saúde na localidade.
- Sempre que preciso medir a pressão, tenho de ir até a cidade (General Câmara). Antes, quando eu era novo, ia a pé. Agora, não posso ir mais - comenta.
Mesmo com as oito décadas de existência, João se lembra das dificuldades vividas em sua época. Entre as histórias contadas, estão as dos bailes realizados nas comunidades, onde o salão era dividido entre negros e brancos.
- Havia uma cerca no meio do salão. De um lado ficavam os negros e do outro os brancos, e a gente não podia passar para o outro lado - diz.
A prática de segregação racial não era exclusiva de General Câmara, diversas cidades da região mantinham esse comportamento, sob os olhares complacentes das autoridades da época. A prática só perdeu força no início da década de 1980.
Conforme relato do vereador camarense Norberto Azambuja, a busca pelo reconhecimento da região quilombola se iniciou através do conhecimento dessa realidade.
- Vimos que podíamos fazer algo aqui. E foram realizadas as entrevistas para comprovar a região como quilombola - afirma.
O vereador acredita que, com esse reconhecimento, novas políticas e investimentos federais sejam possíveis para o empoderamento da comunidade.
- Aqui há uma grande produção de mandioca, quem sabe a gente busque a criação de uma tafona para eles produzirem a farinha de mandioca - declara.
A médica Rosangela Dornelles descobriu em seu trabalho a importância de ouvir os mais necessitados. Como profissional da saúde básica, soube perceber as peculiaridades e codificar o que os pacientes precisam.
- O mais importante aqui é darmos condições a essa população, para que eles tenham empoderamento social - destaca.
O trabalho da médica e do vereador é ser uma ponte entre a comunidade e os atuais programas nos quais a Vila do Sabugueiro será inserida.
Celi da Rosa, 59 anos, é a mais quieta dos três remanescentes de quilombolas, mas talvez seja a com mais expressão em sua fala. Durante a entrevista, ela expressou a sua descrença no fim do preconceito racial.
- Isso nunca vai acabar, o preconceito contra a gente sempre vai existir - desabafa.
O racismo constitui, como se sabe, um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse Michel Foucault, “o meio de introduzir (...) um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. E a fala de Celi reflete uma realidade urgente que precisa ser enfrentada pela sociedade.
Ao final da entrevista, Solange lembra a localização onde ficava a senzala dos escravos. Da sua casa é possível ver a área.
- Nós temos muito orgulho do nosso passado, e queremos que nossos filhos conheçam essa história e lutem por condições melhores - finaliza.
Mesmo sem a história letrada, eles têm a oralidade preservada. E nela está a história de seus antepassados, que agora começou a ser documentada. A Vila do Sabugueiro é a primeira região quilombola de General Câmara. Com pouco tempo de reconhecimento, os agricultores, agora, buscam o reconhecimento dessa herança cultural e melhores condições de vida.

Saiba Mais

A questão quilombola foi inserida no debate brasileiro com a inserção do artigo 68 no ato das disposições transitórias da Constituição de 1988: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Apesar da inserção do artigo em 1988, a titulação das terras quilombolas só foi regulamentada em 2003, com o decreto 4.887 do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
No Brasil, não há um levantamento do número exato de comunidades remanescentes de quilombos. Segundo o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília (UnB), hoje, existem registros de 2.842 comunidades quilombolas espalhadas por todas as regiões do país. Já a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) estima que haja cerca de cinco mil por todo o território nacional.
De acordo com a Fundação Cultural Palmares, responsável pelo mapeamento dos grupos, quilombolas são descendentes de africanos escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos. E entre as garantias de ser reconhecido com o tal estão a formalização da existência dessas comunidades, o assessoramento jurídico e o desenvolvimento de projetos, programas e políticas públicas de acesso à cidadania.
O Programa Brasil Quilombola (PBQ) reúne ações do Governo Federal para as comunidades remanescentes de quilombos. Para fins de aplicação do PBQ, considera-se o levantamento da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura. As metas e recursos do PBQ envolvem 23 ministérios e órgãos federais e têm como principais objetivos a garantia do acesso à terra, ações de saúde e educação, construção de moradias, eletrificação, recuperação ambiental, incentivo ao desenvolvimento local, pleno atendimento das famílias quilombolas pelos programas sociais, como o Bolsa Família, e medidas de preservação e promoção das manifestações culturais quilombolas.

Fonte:André Liziardi - Jornal Portal de Notícias

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